domingo, 3 de outubro de 2010

alheamento

Era definitivo o som que vinha da avenida.
Pensou que era tão medíocre quanto qualquer uma, que no momento em que se pusesse a escrever seria um desagrado a cada frase, e que certamente aquele hematoma na coxa não apareceria quando vestisse a meia calça pendurada no abajur.
Mudara-se para um pequeno apartamento na região central da cidade e passava mais tempo na cama do que o normal. Mais tempo sozinha do que o normal. Para uma garota solteira até que ela trepava pouco, por muitas vezes no dia lhe assaltava esse gosto ácido enquanto se via a acariciar o lado externo da coxa, friccionando neles a palma tesa.
Flerta constantemente e com absolutamente tudo e traz nos pés uma escoriação por ter dançado exaustivamente ao perceber que precisava de mobília na sala.
A habitação estava disposta da seguinte maneira, a entrada possuía uma especie de corredor curto com um interruptor e uma tomada, que por sinal sempre achou estranha; entretanto, não havia reparado na absurdidade de uma tomada ali ao lado da porta e de ter apenas outras três no quarto-sala onde a entrada desembocava. Até aquele dia. Da cama tinha uma vista da porta da frente e da janela que dava para uma grande avenida exposta como as veias de seu antebraço, cuja pele possuía uma transparência acastanhada.
Tinha em mente essa idéia de que as pessoas não gostavam muito de sua presença pois se achava um pouco extravagante, mesmo que até certo ponto podia suportar-se de maneira sociável. Demonstrava fissura ao alinhar o casquete meio pendente para o lado esquerdo, ou dar um bom caimento no lenço sabendo esconder as orelhas um pouco maiores do que o normal. Quando acordou pela manhã, com a claridade da sacada que rasgava pela porta de correr diretamente na cama, pensou em tomar um café na padaria mas se lembrou que estava sem dinheiro. Levantou da cama eram três da tarde.
Era incrivelmente chato o que a claridade outonal provocava em seus sentidos; como se as coisas saíssem de ordem e acavalassem o cotidiano com detalhes que levava com reticência. Tinha que se depilar mais, proteger melhor a face e os lábios, e tomar um cuidado imenso com a umidade que acumulava nos pés. No entanto vestiu a meia calça sem nenhuma preocupação, nem mesmo com a mancha de textura mais acinzentada que o resto da perna.
Quando criança passava muitas horas sozinha a espiar a vida exposta nas paredes de seu quarto. Retinha-se embaixo do acolchoado apenas com pés para fora, pois suava muito nas extremidades e quando descuidava desse habito de manter os pés gelados, ganhava das noites frias inúmeros e pequeninos cortes entre os dedos.
De quando em quando balançava num vagido o cobertor, deixando entrar o vento frio das manhãs de inverno e voltando a ficar imóvel, como uma lebre que se sabe espreitada, acompanhava a poeira descer lentamente pelo ar. Escorou-se na porta do apartamento procurando ouvir alguma movimentação, e quando surpreendida por duas sombras visíveis na luz que vazava por debaixo da porta segurou o fôlego. Ouviu baterem enquanto subia até a ponta dos dedos, dando maior altura ao salto alto; era a mesma menina a espreita na porta de seu quarto esperando que sua mãe passasse com a ternura aveludada de um silencioso existir, para rumar ao banheiro sem que ninguém a visse.
Quando finalmente desistiram de acorda-la esperou ouvir o som do elevador subindo e a porta se fechando. Ascultou mais um momento, nada, era sua vez; saiu ao corredor com a dignidade de pegar as escadas vazias, entretanto no segundo lance percebeu que alguém descia com pressa atrás de si, desembocou no corredor e pegou o elevador, hesitou, ouviu a conversa de um grupo que esperava o elevador no andar abaixo, já deveriam tê-lo chamado inclusive. Segurou a porta a tempo e saiu para o corredor vazio.
Apalpou a bolsa na procura de sua carteira de cigarros e não achando considerou se não havia esquecido de fechar a porta. Subiu novamente pelas escadas e forçou a porta, ao ouvir o ruído da maçaneta vizinha meteu a mão na bolsa arrancou a chave presa no forro abriu a porta e trancou-se com uma euforia que lhe saltava ao pescoço. Ainda agitada liberou a chave do forro da bolsa. Enquanto buscava o maço de cigarros no chão da entrada percebeu a tomada, parou.
Afrouxou o lenço e ascendeu um cigarro dirigindo-se ao banheiro. Olhou-se no espelho com certa volúpia misteriosa exposta na face, abriu a torneira encarou a água que corria; de repente assaltou-lhe um pânico imenso que mal lhe permitiu arrastar-se até a cama e cobrir-se. Caiu no sono sem lembrar de descobrir os pés.