quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Capítulo 7 - O Jôgo da Amarelinha - Julio Cortázar

" Toco sua boca, com um dedo toco o contôrno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre tôdas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha.
Me olhas, de perto me olhas, cada vez mais perto e, então, brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam entre si, sobrepõem-se e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam dèbilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua entre os dentes, brincando nas suas cavernas onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E, se nos mordemos, a dor é doce; e, se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu te sinto tremular contra mim, como uma lua na água."

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Conteção e rebuliço sob a mesma constelação ou Se fosse paragem seria bênção pagã

Eu agora entendo porque saiu enevoada a manhã.
Enquanto o sol fazia suas aparições fugidias, vez por outra, um rio de luz iluminava a quietude de tuas pernas. Eu alí, dentro do rebuliço, pensei na tua contenção particular,nessa postura perdigueira que te possui. Como aquela ave desconhecida que em vôo alto, com asas sempre abertas, desfere círculos inacabados na amplidão plana do céu. Quem sabe me engano e não eram de plumas tuas asas, mas frias hélices a desenhar círculos fechados em si mesmo.
Por um instante pensei que aqueles raios escassos pudessem te converter em pedra. Quem sabe então, eu, Medusa enfurecida, gritaria bem alto conclamando os deuses urbanos que habitam esta sala. Convocaria e conjuraria com eles meus planos secretos na ânsia de que, enfim, ambos reconhecêssemos a terra vermelha que nos tinge a sola dos pés.
Gritei pois meus pensamentos eram como víboras. Assim que expulsei todo ar que tinha dentro de mim tudo se dissipou. Permaneceram os fios de cabelo como os fios do destino, claros, ralos e finíssimos. Gritei para acabar com tua inércia, gritei para te pôr em sobressanto, para que finalmente aflija essa queimadura inaplacável que se tornou teu silêncio.
Mas dali, vinha nada.
Te digo, a postura perdigueira já não me converte mais em caça. Esse teu silêncio - latênte em demasia - não conspurcará mais minha selvageria trágica. Agora somos tu e eu a mesma constelação presa no céu. Os anos se afastam mas ainda assim existe a mesma forma estática a perdurar no tempo. Fica bem!
Eu entendo as quenturas por trás dessa pose de pedra.
Eu entendo as noites onde o sono é um eterno porvir.
Eu entendo a confiaça que depositas no amanhã, e que isso te acalma e permite o entregar-se a paisagem onírica que te é cara.
Eu entendo as manhãs onde a alegria é um rio que escorre manso.
Eu entendo os olhos aflitos.
Eu entendo o peixe a bolir no estômago.
Eu te entendo, e entendendo me reconheço entendido em ti.
Não te dirigirei mais a benção que de meus olhos brota quando te sinto perto. Amanhã serei pedra também, cão de caça a se saber na espreita, de mim só terás silêncio, silêncio e benevolência. Pois eu entendo dos contratos pagãos que fazemos diariamente com nós mesmos, sei da seriedade de nossos ritos solitários, sei teus dias e tuas noites, pois a força que aquela constelação emana não é fácil de se carregar. E disso sei.
Entendo o que sei agora e já nos entendo.
Perdoa-me se falo nós como alguém que junta em um, com isso nada formo e nada crio. É que as coisas distantes e sem interação aparente, por mais que a visão não dê conta, a mim sempre pareceram colidir no campo.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Assusta não!

Esse espaço de luz que existe em mim
Esse cômodo amplo e ensolarado que os outros visitam
É de recato e ilusão esse quarto
Nele danço gentileza e elegância.

- porte de gazela olho de leoa -

Não há nessa luz mais que a moleza leve de minhas cadeiras
Meus pés frouxos a rebolar melodias recônditas.

Mas se o acaso porventura vier em forma de nuvem
bandida
irromper a luz dessa sala
Cuida esse algo que salta o ar para nunca mais pousar
Revoada de sombra parada no ar a estancar as coisas e o dia.
Assusta não!
É de crueza e realidade mas como tudo que sobressalta
ressalta e conta um tempo.
Esperar pode ser demasiado prematuro nessas horas.
Assiste o que incorpora e tinge as paredes com disciplina
pois é assim que os espaços se dão
- e são tantos ultimamente -
E o tempo nessas horas não diz nada.
Melhor é manter os olhos no chão e perder-se nesse jogo
Permanecendo os dois, parquê e tu, pequenos inertes na espera de ser reconhecido por aquele que olha.
Quem sabe esse recorte preencha a latênciabeija-flor que desposou teus pensamentos.

Quisera eu!

Acorda não! Segue em paz.
Espaços estão para serem habitados
nos momentos de sombra é que se revelam
e não custa nada deixar esse cômodo soprar para dentro de nossos pulmões.
Por mais que na hora penses que esse suspiro vem de ti.
Deixa-te apreender por esses segundos de não dizer
Permite a luz sua virtude de esmaecência, e se preferir esmaece também
Que nem só de horas claras se fazem nossos dividendos
São também de sal e penúmbra os espaços que circundam o farol.