terça-feira, 10 de agosto de 2010

Dez anos de sobe e desce com a Cia Elevador de Teatro Panorâmico

Marcelo Lazaratto é professor do curso de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e está a frente da direção da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico há dez anos.

PFE- Então Lazzaratto, você atua de maneira concisa em dois pólos de formação de artistas de teatro do estado de São Paulo e está também a frente de uma companhia de teatro independente há dez anos. Qual a diferença da produção dentro da academia e fora dela?
Marcelo - A academia hoje está muito parecida com o teatro de grupo de pesquisa, com os grupos de teatro que pesquisam a linguagem teatral. Pelo menos aqui em São Paulo muitos professores, da UNICAMP, da USP e UNESP, com quem eu tenho mais contato, são também diretores de grupos de teatro.
Muitos alunos que se formam nessas universidades tentam, pelo menos num primeiro momento, formar grupos de pesquisa a partir do que eles aprenderam na universidade. Investigando não somente a questão técnica, mas também a dinâmica, a seleção de temas, as abordagens; também, obviamente, as pessoas se afinam por questões estéticas e optam por pesquisar tais e tais aspectos.
Então, nesse sentido não há tanta diferença da produção teatral na universidade e no teatro de pesquisa fora dela, é quase que uma extensão direta. Por outro lado, é claro que não é só esse tipo de direção que eu faço fora da academia. Sim, eu tenho um grupo de pesquisa que é a Cia. Elevador, mas de vez em quando sou convidado para dirigir espetáculos aqui e acolá, onde a questão da pesquisa não é o foco central mas de alguma foma ela ali também se estabelece.
No meu fazer eu procuro, procuro não, acabo imprimindo o “meu olhar” nesses trabalhos, mesmo que sejam por dois meses, um mês de ensaio. Se eu topei fazer aquele trabalho é porque alguma coisa ali me interessa. Então, acaba também sendo a minha pesquisa, só que obviamente sem o tempo de maturação que um grupo de pesquisa pode ter, pois um grupo de pesquisa se desenvolve ao longo do tempo, o tempo é fator fundamental em qualquer pesquisa que procure detectar suas variáveis.
Por exemplo, o ano passado encenei “A Tragédia de Romeu e Julieta”, onde eu estava de corpo e alma, durante dois meses fiquei trabalhando todas as escolhas, os encaminhamentos, os recortes; a minha visão dessa obra. Eu acreditava naquilo mesmo. Não fiz concessões do tipo, estou trabalhando dessa forma, sem o devido tempo, então estou deixando de fazer "aquilo" para fazer "isso". Lógico que nem sempre você consegue fazer assim, mas com o envolvimento absoluto do grupo de atores que eu tinha tive a felicidade de realizar um ótimo trabalho.
PFE - Então existe uma margem de referencialização oriunda de seu próprio trabalho, da sua formação, para dar uma abordagem que acaba sendo um olhar pessoal sobre a obra?
Marcelo - Acho que isso sempre acontece, é impossível não acontecer, pois se você olha uma coisa você olha com seu olhos; então de maneira genérica sim. Por outro lado eu não sou um diretor que procura imprimir na obra uma verdade apriorística; o que eu aprendi ao longo dos anos de prática e reflexão é que a obra me conduz. Na verdade é uma via de mão dupla, eu conduzo a obra e a obra me conduz, e aí aos poucos a gente vai chegando num denominador comum, vai encontrando unidade, melhor, vai descobrindo a nossa singularidade.
Porque eu não leio uma peça e penso vou me apoiar na técnica farsesca, porque estou em um momento em que estou trabalhando com a farsa então tudo que eu olho agora é farsa; eu não acredito muito nisso. Eu não acredito muito em trabalhos de pesquisa que mergulham em uma única maneira de processar. A médio prazo tende a ficar limitado, você pode ter um trabalho espetacular, dois, três, mas chega um momento em que vira "o mesmo". Mais um do mesmo. Então eu opto pela diversidade, cada obra nasce com sua “cara”.
Se você pegar as minhas direções elas são bem diferentes umas das outras; elas tem uma cara, sim, acredito que já adquiri alguma personalidade, mas não é uma cara determinada arbitrariamente ou por um mesmo tipo de procedimento técnico-estético.
Acho que isso advém um pouco do "Campo de Visão".
O "Campo de Visão" é sistema improvisacional muito simples que eu considero um achado. É um grande guarda chuva que contempla tudo, todos os desejos, todas as técnicas, todos os olhares; o ator quando está lá pode fazer o que ele quiser, experimentar o que ele quiser, ali ele pode jogar com o outro e ir se redimensionando sem perceber, e esse tipo de processamento sensivel e criativo acaba indo para a cena, interferindo positivamente em meu trabalho como diretor.
Eu sou completamente dependente dos atores. Como a minha primeira formação é de ator, eu acho que eu entendo um pouco o tempo deles, eu entendo o quanto eles podem me oferecer e em que tempo. Tem a minha ansiedade, é claro, de querer resolver as coisas, mas o Campo de Visão me ensinou que as coisas vão se resolvendo através da “dinâmica de afetos” que ele promove.

PFE - O Campo de Visão é um sistema que você desenvolveu junto com a Cia. Elevador?
Marcelo - Ele se verticalizou com o "Elevador". Eu trabalho com o "Campo de Visão" desde 1990. Eu comecei a utilizá-lo em minhas aulas porque quando eu entrava como ator no Campo de Visão gostava muito, me sentia absolutamente criativo e intensificado; e com o passar dos anos ele foi se desenvolvendo do meu jeito, fui descobrindo a cada dia sua potência, detectando os melhores procedimento de aplicação, e etc..
Em 2000 eu entrei no Mestrado pra sistematizar o "Campo de Visão" no mesmo ano em que eu estava formando a Cia. Elevador, por isso que ele se verticaliza quando a Compania aparece. Eu estava com a pesquisa vinculada ao mestrado e com a Cia sendo gestada, então nesses últimos dez anos mergulhamos em seu desenvolvimento.
Hoje os atores da Cia. Elevador dão aula de "Campo de Visão"…Tem muita gente que o utiliza por aí, mas sem o devido estudo , sem o tempo necessário de entendimento - fala dos cursos que ministrou e da simpatia que o sistema desperta nos atores, que leva os mesmos a reproduzirem - mas as pessoas que eu julgo hoje que podem disseminar com propriedade o que aqui se pesquisa, são os atores da Cia. Pois eles praticam e refletem sobre esse sistema improvisacional há dez anos.
PFE - Bem, ainda esse ano saí um livro sobre o sistema improvisacional "Campo de Visão". Você poderia adiantar para os leitores do Palco de Papel sobre o que se trata e qual o tipo de abordagem de criação?
Marcelo - O Campo de Visão é um exercício de improvisação muito simples, coral e coletivo, onde a primeira e única regra é: você só se movimenta quando algum movimento estiver no seu campo de visão. Tem a figura de um condutor, que conduz os trabalhos em um primeiro momento.
Então é um jogo de improvisação onde você, de saída, amplia seu repertório gestual e imagético, amplia sua percepção espacial, e potencializa outra forma de representação que não a contracenação, ou seja, independe do olho do outro. Característica que pode ser usada em alguns tipos de encenação.
O Campo de Visão tem duas fases: como exercício de ator que cabe a qualquer trabalho, como potencializador criativo e integrador, de maneira muito rápida e simples, e ele pode se manifestar também como linguagem cênica.
A Cia. fez um espetáculo de 2003 á 2007 ininterruptamente chamado "Amor de Improviso", que era a tentativa do Campo de Visão de fato se tornar uma linguagem. Posso te dizer que nos primeiros dois anos a gente se debatia internamente com essa linguagem improvisada, e também junto ao público a cada apresentação. Realizamos essa pesquisa aos olhos do público. Instauramos o que chamamos de “processo como obra”. Por isso em um primeiro momento a necessidade dos debates. Precisávamosmos saber como que aquela peça improvisada chegava ao público. Até que chegou um momento em que eu percebi que não precisava mais.
Muitas pessoas que assistiam a peça já achavam que não se tratava de improviso, tamanha era a força das escolhas dos atores naquele dia, e aquilo que acontecia somente naquele dia a platéia achava que era marcado. Quando eu percebi que chegou neste lugar, não precisava mais de debate.
Surgiu uma obra, e se o publico viesse a achar se era improvisada ou não a gente deixava pra "eles" resolverem. Se pelo fato de ser improvisado deixava mais interessante ou não a gente deixava também na mão deles. Nesse momento eu percebi que a gente tinha adquirido a linguagem do Campo de Visão. Ele realmente estruturava a encenaçnao sem perder suas caracteristicas improvisacionais.
O "Amor de improviso" volta esse ano na comemoração dos dez anos, e o Campo de Visão voltará forte no próximo espetáculo da Cia pra 2011, onde a gente vai trabalhar o Coro das tragedias gregas.
PFE - Você disse que era absolutamente improvisado, mas não haviam recorrências?
Marcelo - A peça tem apenas três coisas que os atores sabem e repetem diariamente: aquilo que "starta", uma música no meio da peça que avisa que chegou a hora de acontecer "tal" coisa, e o fim da peça quando acaba a luz. As três balizas.
O que a gente viu depois de muito fazer, é que a peça tem que durar entre cinqüenta minutos e uma hora e dez no máximo.
PFE- Então tem um tempo?
Marcelo - Para o acontecimento ficar um pouco mais justo, amarrado. Não é que não pode, a gente acabou optando por isso. Tanto que eu tive a idéia em 2005, mas nunca tive chance, ou nunca me empenhei absolutamente para isso acontecer… mas eu acho que o "Amor de improviso" é uma peca que tem que estar em bienal de arte.
A minha idéia era fazer o espetáculo na Bienal de São Paulo todos os dias ininterruptamente, transcender a questão conceitual do teatro, porque essa peça rompe com as fronteiras entre o teatro, a dança e a performance; abrir a exposição e já estar acontecendo. Eu precisaria de mais elenco, uns trinta, quarenta atores para revezamento, enfim, quem sabe um dia esse meu sonho se realize…
Mas ela em cartaz no teatro convencional tem essa duração. Não foi uma determinação mas um percepção dos atores, do corpo dos atores, da minha condução, da percepção do público… nós fomos entendendo.
PFE- Então automaticamente eles vão finalizando?
Marcelo - É, vai-se vendo que está chegando lá, fica nítido, e se está chegando lá, chegou, não precisa esgarçar.
PFE - Como é manter uma Compania por tanto tempo, é uma resistência?
Marcelo - É uma resistência, sim. Tudo se baseia em respeito, confiança e admiração. Pra trabalhar tenho que respeitar os limites, preciso confiar naquilo que você e eu nos propomos a fazer, e eu preciso admirar seu trabalho e você o meu. Se não tiver essas três palavrinhas alguma coisa está errada.
É por aí que entra a questão do afeto, um grupo de teatro que fica muito tempo junto desenvolve esse fator, e a característica afeto é muito importante. Se você não tem afeição por alguém, acaba adquirindo ao longo dos anos… mas também a afeição pode ser um problema, você pode acabar “perdoando” demais muitas falhas.
Fala sobre a difícil tarefa de gerenciar os afetos, do amadurecimento individual de cada um, o fator de substentabilidade financeira, as escolhas pessoais de empregos e formação de família, e também da sua primeira experiência com uma companhia ainda em atividade chamada Razões Inversas.
A Cia. Elevador optou por correr riscos que definem o por quê de estarmos aqui hoje. Chega um ponto que o grupo de pesquisa tem que ousar e não só esteticamente, que eu acho que nem precisa mais desse tipo de ousadia hoje em dia, ousadia é conseguir realizar aquilo que acredita. Falo de ousar em uma questão em que a gente não tem domínio, como na primeira peça da Cia inspirado em conto do Saramago (A Ilha Desconhecida) que foi montada em três semanas. Foi uma peça que já nasceu feliz.
Pegamos uma temporada em um teatro popular sem gastos, a casa começou a ficar boa e o primeiro risco que a gente cometeu foi alugar um teatro privado. Esse risco financeiro foi fundamental para que a Cia. Elevador continuasse existindo até hoje, pois a peça não só continuou em outro teatro como foi muito bem recebida; e todo o dinheiro arrecadado de bilheteria serviu de caixa pra fazer " A hora em que não sabíamos nada uns dos outros" em 2002.
E essa peça foi que nos impulsionou, nos deu visibilidade perante à intelectualidade e à crítica nacional, e que nos apontou as bases de nossa pesquisa, o tipo de teatro que faríamos.
Então… com a “Ilha Desconhecida” tinha um risco financeiro, que poderia fazer com que nos déssemos mal, poderíamos “fechar as portas” ali. Mas tem que arriscar, não dá pra se acovardar frente a esse mundo que nos é tão ameaçador.
Depois de um tempo foi fundamental também ter um espaço. Então, esse foi o outro risco: sem nenhum dinheiro ou incentivo, arrumar um espaço de ensaios, de convívio, que é o galpão que a gente tem até hoje, um espaço com chance de virar um pequeno teatro. Arriscamos, e depois de alguns meses veio nosso primeiro “Fomento”, que foi ótimo pois a gente pode se entender como um grupo em uma casa, o que é outra coisa! Pois com a casa a gente alcança a dimensão da intimidade que nos atravessa, o dia a dia, a rotina de fato acontece.
A dimensão intima, o que é profundo como diz Bachelard, aparece; sem a casa fica esquisito, com a casa aparece. E, é claro, com todos os problemas de uma casa, ter que administrar uma casa (enumera inúmeros problemas hidráulicos, elétricos e de locação enfrentados, e também os desejos e projeções pessoais em conflito), mas que também acabam oferecendo uma "cama" afetiva que fortalece a relação entre as pessoas.
O próximo passo, e que será dado ainda esse ano, é transformar nossa casa em um espaço não só de produção, mas também de propagação de cultura, abrir sua porta ao público; onde a gente possa fazer o que a gente quer e também abrir as portas para as pessoas entrarem, saírem e levarem o que bem entenderem dali. Para se tornar, através da troca, um manancial contínuo.
PFE - A programação comemorativas começou com o "A hora em que não sabíamos nada uns dos outros". Já falamos do livro sobre o sistema "Campo de Visão", e o que mais o público pode esperar da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico nesse ano?
Marcello - Duas re-montagens: volta ao cartaz "Amor de Improviso" que por ser improvisada na realidade é uma peça que não se ensaia, mas tem o fato de a gente "jogar" o "campo de visão" para que os corpos se sensibilizem novamente; e a re-montagem do " Eu estava em minha casa esperando que a chuva chegasse" do Jean Luc-Lagarçe, que é uma montagem só com mulheres.
Além disso estamos preparando para Outubro a estréia de "Do jeito que você gosta", de William Shakespeare inaugurando o Espaço Elevador. Sem dúvida um momento muito especial em nossa trajetória.

Obrigado Marcelo Lazaratto.

ps: para o jornal Palco de Papel do Macondo Coletivo.

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